"Uma viagem no tempo": Por que a Rota Lícia da Türkiye é uma jornada de autodescoberta

Considerada a trilha mais bonita do mundo, o percurso oferece o melhor da natureza – a primavera desperta o caminho, o outono acalma e o inverno pinta as montanhas com uma luz pálida.

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Ruínas de uma igreja bizantina perto de Ucagiz. / Others

Kate Clow ainda se lembra daquela noite em Sidyma — outrora uma cidade da antiga Lícia, agora a tranquila aldeia montanhosa de Dodurga Asari, na província de Mugla.

Aninhada na encosta sul do Monte Cragus, a noroeste da foz do rio Xanthos e a meio caminho entre Fethiye e Kas, foi lá, no final da década de 1990, que ela começou a traçar o que viria a ser a Rota da Lícia.

Ela seguiu o último trecho da antiga estrada de Xanthos, passando por um sarcófago meio intacto — um dos muitos cujos ocupantes permanecem não identificados — e uma fonte pontilhada de cacos de cerâmica; ela continuou até que as ruínas de Sidyma surgiram à sua frente no crepúsculo.

A acrópole de Sidyma destacava-se contra um céu cada vez mais azul, com cabras selvagens reunidas ao longo das muralhas do castelo, um momento que, segundo ela, capturou o espírito da trilha, onde se caminha pelas mesmas estradas que as pessoas usavam há dois mil anos.

Clow lembra-se das cores a mudar à medida que o sol tingia a cordilheira Akdag — uma montanha da Lícia com mais de 3000 metros — em tons de rosa e creme, e a lua a surgir sobre as suas encostas cobertas de neve. Ao caminhar sob um plátano gigante no centro da aldeia, passou pela mesquita Asar Dodurga e pelos banhos romanos pertencentes à antiga Sidyma.

Mesmo agora, Clow, de 76 anos, diz que aquela noite ainda resume a sensação da Rota da Lícia — um lugar onde a história, a paisagem e o calor humano convergem ao longo do mesmo caminho.

«Cada passo é um passo através do tempo», diz ela.

Aquela sensação de tempo, lugar e hospitalidade que antes parecia pessoal agora está por trás de um título global.

A Rota da Lícia, que se estende da cidade turística de Fethiye, na província de Mugla, até as colinas acima de Antália, na costa mediterrânea da Türkiye, liderou a lista da revista Time Out das «Trilhas de Caminhada Mais Bonitas do Mundo».

Este mês, a publicação britânica elogiou a rota por sua combinação de natureza, história e vistas panorâmicas do mar.

Os caminhantes, no entanto, descrevem-na em termos mais pessoais: como disse um deles, «uma estrada que revela quem você é».

Uma antiga liga democrática

A trilha tem mais de 700 quilómetros, seguindo a espinha dorsal da civilização lícia — uma cultura de 3.000 anos conhecida por estabelecer uma das primeiras ligas democráticas do mundo.

Clow diz que a ideia sempre foi «ligar as estradas antigas e as cidades antigas», para que os caminhantes modernos pudessem «seguir as mesmas linhas que os comerciantes, soldados e aldeões usavam antigamente».

À medida que se avança para leste a partir de Fethiye, nomes como Letoon, Xanthos, Olympos e Phaselis parecem um catálogo da antiguidade mediterrânica.

Em Patara, os caminhantes passam pelo edifício restaurado do parlamento, onde a Liga Lícia, uma das primeiras democracias do mundo com uma constituição e funcionários eleitos, costumava se reunir.

«Você fica nessa assembleia e pensa: esse foi um modelo que impressionou até mesmo os romanos», diz o antropólogo japonês Eisuke Tanaka, que pesquisa a rota há mais de uma década, à TRT World.

Mais acima nas colinas, outra cidade antiga, Pinara, aparece com o seu favo de mel de túmulos escavados na rocha.

«Parece que a montanha está cheia de janelas», diz um guia local.

Nas colinas perto de Tlos, uma antiga cidade da Lícia próxima à moderna cidade de Seydikemer, a vista se estende por todo o Vale de Xanthos. Enquanto isso, a cidade mais tranquila de Sidyma — agora a vila onde Clow vive há mais de 30 anos — esconde os seus templos e túmulos entre oliveiras e casas de pedra.

Mais perto do mar, os vestígios de outra cidade antiga, Phellos, e o seu porto, Antiphellos, ecoam acima do que hoje é Kas. Ao longo da costa, os muros baixos de pedra de Pydnai erguem-se entre as dunas, enquanto o castelo de Simena, conhecido como Kalekoy, observa o tráfego de barcos e os sarcófagos da Lícia que ficam meio submersos na baía.

Na cidade agora chamada Demre, na antiga Myra, os caminhantes serpenteiam entre túmulos de pedra e a igreja associada a São Nicolau.

Em Phaselis, uma das cidades antigas mais antigas, três bacias portuárias ainda moldam a água e, mais a leste, as ruínas de Olympos se espalham pela floresta ao longo de um leito de rio que se abre para o Mediterrâneo. Dizem que Alexandre, o Grande, passou algum tempo nesta paisagem.

«É como caminhar por um museu ao ar livre sem paredes», diz Tanaka. «Pré-história, clássica, bizantina, otomana — sente-se essas camadas com o corpo, não apenas com a mente.»

O Ministério da Cultura e Turismo da Türkiye promove há anos essa fusão entre património e paisagem por meio de caminhadas guiadas e eventos de consciencialização.

Se as cidades dão a narrativa à trilha, o próprio solo fornece o ritmo. “A Rota da Lícia apresenta texturas diferentes a cada passo”, diz Clow.

“Calcário poroso que absorve água, arenito em camadas macio o suficiente para ser esculpido, rocha vulcânica escura polida por séculos de pisadas e veios ocasionais de mármore brilhando ao sol.”

Num momento, os caminhantes estão em calcário granulado; no momento seguinte, estão a atravessar lajes vulcânicas lisas que parecem vidro. Algumas estradas antigas ainda são visíveis como nervuras de arenito cinzeladas. Outros trechos brilham com fragmentos de mármore que refletem a luz.

“Até as rochas dizem que você está a se mover entre diferentes épocas e diferentes mundos”, diz Tanaka.

A rota pode subir do nível do mar a quase mil metros em um único dia. «Pode começar a manhã a nadar e terminar a noite acima das nuvens», diz o caminhante local Feyzullah Burucu, 52, à TRT World. «Essa mudança é o que torna a experiência poderosa.»

«Será que conseguimos mesmo fazer isto?»

Para muitos caminhantes, a Rota da Lícia não se trata tanto de marcar uma rota famosa, mas sim de testar os seus limites. «Fomos em maio de 2023», conta à TRT World Ayse Betul Aytekin, uma investigadora de 27 anos que percorreu parte da trilha com um grupo de seis ou sete amigos e um guia.

«Planeámos uma rota de três noites e quatro dias para nós. Uma noite acampámos na baía de Cennet, outra no topo de uma montanha e outra num planalto elevado.»

Ela lembra-se das dúvidas no início. «A questão era: “Será que conseguimos mesmo fazer isto?” A distância total da nossa secção era superior a cinquenta quilómetros. Todos praticamos algum desporto, mas não sabíamos se os nossos corpos aguentariam. O que tornou esta experiência transformadora foi perceber que éramos capazes.»

«Nós nadamos onde antes as pessoas viviam e trabalhavam, e agora só restam as pedras e o mar. Isso lembra-nos que escapar do caos da cidade sempre exigiu esforço. A beleza sempre teve um preço em suor», diz ela.

Para a Dra. Ozlem Uruk Hammond, 59, a Rota da Lícia não foi apenas um desafio físico, mas uma fuga do esgotamento.

«Eu vivia entre hospitais, laboratórios e reuniões até altas horas da noite», conta ela à TRT World. «Cheguei a um ponto de exaustão emocional.»

Hammond trabalha em estreita colaboração com pacientes com cancro e chegou a um ponto em que simplesmente precisava respirar — afastar-se, limpar a mente e reencontrar-se. Ela ainda não sabia que a trilha se tornaria o caminho que a reconectaria consigo mesma.

A sua primeira caminhada na trilha, em maio de 2024, começou em Ovacik, subindo em direção à montanha Baba, acima de Oludeniz (Mar Morto).

“Sente-se o cheiro de tomilho, poeira, sal marinho. Entre as ruínas e o mar, sente-se tanto a morte quanto o renascimento”, diz ela.

“Essas cidades antigas mostram que civilizações inteiras podem desaparecer. Ao mesmo tempo, a terra continua produzindo nova vida.”

Perto de Kas, ela encontrou a orquídea da Lícia, uma espécie que, segundo os especialistas, existe apenas nesta região.

«Era uma coisa tão frágil e bonita», lembra-se ela. «Tirei fotos e depois pintei-as no centro de uma obra abstrata. Tornou-se um símbolo para mim da importância deste lugar.»

História, mar, floresta e montanhas

Burucu traz outra perspetiva — a de alguém que vive com a trilha o ano todo. Nascido em Diyarbakir, mudou-se para Antália após anos a trabalhar no turismo.

«Gostava de ser empregado de mesa porque conhecia pessoas de muitos países», diz ele, «mas em locais sem estrutura, as longas horas de trabalho desgastam-nos física, mental e emocionalmente. A certa altura, decidi que já tinha feito o suficiente.» Ser empregado de mesa era um trabalho emocional para Burucu.

Ele encontrou a recuperação nas caminhadas. «Para mim, caminhar é quase uma experiência purificadora», diz ele. «No momento em que dou o primeiro passo, tudo o resto desaparece.»

O que a Rota Lícia oferece, diz ele, é um pacote completo. “Quando me mudei para cá, disse que esta região era ‘três em um’ — mar, floresta, montanhas. Para a Rota Lícia, digo que é ‘quatro em um’: história, mar, floresta, montanhas. A combinação perfeita.”

Ele diz que as caminhadas remodelam o seu sentido de identidade: após um dia difícil, sente-se leve novamente, ouve os seus próprios pensamentos com mais clareza e lembra-se de que a paz não vive em lugares lotados. «Um café tranquilo com uma bela vista pode animá-lo, um choro privado pode curá-lo e cantar para as árvores não parece mais estranho.»

Ele tem uma mensagem para os visitantes. «Por favor, respeitem a natureza», diz ele. «O mundo é a nossa casa. Não se deita lixo na sala de estar. Não o deixe no trilho. Pensem na Rota Lícia como uma herança para as gerações futuras — e não devemos trair uma herança.»

Caminhar pela Via Lícia oferece lições que vão muito além da trilha em si. Mostra como o património não é algo selado atrás de um vidro, mas um processo vivo moldado pelas pessoas que o valorizam hoje.

A viagem tem uma maneira de reduzir a vida ao essencial: o barulho e a pressa desaparecem, deixando uma sensação mais clara do que é importante.

Muitos caminhantes dizem que voltam transformados — mais leves, mais equilibrados e mais conectados com o passado e consigo mesmos.

Em algum lugar entre Fethiye e Antália, entre o parlamento de Patara e as chamas de Olympos, entre calcário e rocha vulcânica, caminhantes de todo o mundo continuam a descobrir a mesma verdade.

«Cada passo», lembra-nos Clow, «deixa um rasto — não na terra, mas na sua alma».